Bebê Rena (2024) – Crítica da série

A série Bebê Rena, que está liderando o ranking de audiência global da plataforma de streaming Netflix, estreou no dia 11 de abril. Contando com 7 episódios, a série foi criada, escrita e protagonizada por Richard Gadd e conta com Jon Brittain, Josephine Bornebusch e Weronica Tofilska. No elenco, temos a presença de Richard Gadd, Jessica Gunning e Nava Mau.

bebê rena
Bebê Rena – Créditos da imagem: ND +/Reprodução

Sinopse de “Bebê Rena”

Baseada em uma história real que aconteceu com o protagonista e criador da série, Bebê Rena irá contar a história do comediante, escritor e performer Donny Dunn (Richard Gadd), que está tentando vencer na vida como comediante e, enquanto isso não ocorre, ele trabalha em um pub. Lá ele acaba conhecendo por acaso uma mulher chamada Martha Scott, de quem se compadece da vulnerabilidade aparente dela e oferece uma xícara de chá gratuitamente. A distorcida interação entre eles acaba por resultar em um sério caso de obsessão e perseguição por parte de Martha, o que trás inúmeros problemas.

Difícil, densa, pesada, mas cativante e surpreendente

O título desse tópico serve bastante para descrever, em linhas gerais, como é a série Bebê Rena, o mais novo sucesso da Netflix: difícil, indigesta, densa, pesada, mas, ao mesmo tempo, extremamente cativante, surpreendente e interessante. Um complexo e intrincado ensaio sobre saúde mental e emocional. É quase impossível assistir a série e passar incólume a ela.

Nossas vidas intra e interpessoais e nossa jornada enquanto seres humanos está longe de ser linear. Nossa constituição interna é tão rica, ampla e vasta quanto é complexa, contraditório, ambivalente, repleta de altos e baixos, idas e vindas. Guardamos dentro de nós um universo infinito de sentimentos, pensamentos e posturas que nem sempre vão estar alinhados, que nem sempre vão concordar com o que nós mesmos achamos que é o correto, que dirá com o que o senso comum pensa que deveria ser o certo.

O processo de entender a si mesmo e o que se passa dentro de nós e em nossas vidas é bastante difícil. Todos somos cheios de nuances, lados, assim como nossas ações, nossas falas. Muitas vezes vamos agir de forma contrária ao que pensamos. Muitas vezes vamos voltar atrás em nossas atitudes. Muitas vezes não vamos entender o que fazemos. Podemos até fazer o que é certo muitas vezes, mas o ato de agir certo em um determinado momento não significa que vamos sempre nos conseguir manter agindo certo. É muitas vezes cheio de vai e volta.

É isso que fica muito evidente em relação ao protagonista, Donny Dunn. Por diversas vezes ele saberá qual seria a atitude mais acertada a se ter ali, mas o turbilhão de pensamentos, sentimentos e toda a bagagem emocional e problemas internos dele vão fazê-lo agir de outro modo. Tudo o que Donny faz pode parecer confuso, mas o processo de cura é assim mesmo: confuso, não-linear. O que ele faz pode por vezes não fazer sentido nem para ele mesmo, nem para aqueles que veem tudo de fora.

Os comportamentos humanos podem apresentar inúmeras variações, além também de poderem apresentar um contingente enorme de contradições e isso vale obviamente para Donny, fica flagrantemente expresso em sua trajetória, em sua história. Isso de forma alguma invalida as dores, angústias e sofrimentos do personagem, pelo contrário: mostra a intensidade, duração, complexidade e extensão que elas podem ter. Esse é justamente um dos motivos que faz com que nossas questões psicológicas e emocionais sejam tão complicadas de lidar.

Donny, no começo da série, vislumbra de certa forma a vulnerabilidade de Martha quando ela adentra no pub que ele trabalha. Comovido por isso, age de forma gentil com ela, fornecendo a mesma algo que pode ser uma nesga de calor humano que ela pode estar precisando. Mas o que ele sequer podia imaginar que o ser humano do outro lado também possui uma série de questões e vai receber esse ato de bondade de um modo diferente, que culminará em um obsessão, em perseguição.

Nas conversas com ela, ele nota de alguma forma que ela está mentindo. Mas ele se vê intrigado pela figura dela. Como ele mesmo admite e não faz questão alguma de esconder, ele, até certo ponto, também se torna dependente daquilo que ela tem a oferecer. Apesar de ser uma relação desigual (afinal, ele está sendo stalkeado, etc), há até certo ponto uma simbiose, onde ele mantém tendo contato com ela, conversa com ela e ela, ainda que sem saber, ajuda-o a suprir sua carência, sua necessidade de afago na auto estima e confiança.

Martha envia milhares de e-mails, incontáveis SMS, muitas horas de mensagem de voz, cartas, presentes. Começa a segui-lo por onde ele vai. Escreve incontáveis tweets sobre ele, começa a comentar muito em todas as postagens dele na Internet. Passa a ser mais hostil e abusiva quando ele não corresponde ao que ela espera, começa a exibir um ciúmes doentio, passa a falar agressivamente da ex dele, Keeley e a persegui-la, cobra dele uma série de atitudes. Chega um ponto em que ela fica horas no ponto de ônibus em frente a casa onde ele mora (que, aliás, é a casa da sua ex-sogra, que permite que ele more ali).

Donny é profundamente inseguro, desprovido de auto confiança e de auto estima. Como ele próprio fala na série, o que ele mais ama no mundo é odiar a si mesmo. Aliás, em toda a série Donny não foge da sua cota de responsabilidade diante dos fatos, não se pinta como o alecrim dourado isento de erros e defeitos. É justamente o oposto: ele faz questão de mostrar seus erros, seus defeitos, os pontos em que acredita que errou. Ele se desnuda por completo diante do espectador, se expõe enormemente, coloca para jogo suas vulnerabilidades e problemas.

E esse é um dos pontos que faz a história diferente de outras e que, ao mesmo tempo, a torna tão angustiante. Diferente porque frequentemente as pessoas tendem a esconder suas falhas ao contar algo de sua vida e angustiante porque ele logra em nos fazer mergulhar em seu interior e compartilhar do seu sofrimento.

O nível de stalking de Martha vai escalando e piorando, fazendo com que Donny se sinta cada vez mais encurralado, acuado, sufocado. Em um dado momento, ele monta um perfil em um site de encontros, usando outro nome e outra profissão. E ela encontra a encantadora Teri. E por que ele faz isso, usa outro perfil?

Há uma questão dupla aí: ele quer tentar ficar longe do radar, dos holofotes que Martha o coloca e também porque, como ele admitirá logo cedo, nutre preconceito pelo fato de Teri ser uma mulher trans.

Ele sai várias vezes com ela e acaba se apaixonando, ela se torna um verdadeiro oásis na vida dele. Detalhe: ele não contou para ela sua verdadeira identidade. Acredita, erroneamente, que assim a protegerá de Martha. Ele chega a contar sobre Martha, mas não sobre quem ele é. Em uma determinada noite, após sair com Teri, quando ele está finalmente a caminho de passar uma noite com ela, Teri (maravilhosamente interpretada pela talentosa Nava Mau) pede a ele que a beije ali no metro. Evidenciando sua transfobia, ele recua e vai embora, magoando profundamente Teri.

Algo que angustia bastante ao assistir Donny em sua jornada é sua passividade, sua lentidão em fazer algo a respeito das coisas, sua morosidade. Vemos momentos em que acreditamos que ele pode talvez ter seus problemas de relacionamento com as pessoas tentarem ser resolvidos se ele falar e explicar melhor, ainda que minimamente, o que está sentindo e passando. Mas, ao mesmo tempo que nos angustia, temos empatia por ele, compreendemos, não conseguimos condená-lo.

Não há julgamentos simplistas sobre quem é bom e quem é mau em Bebê Rena, mostrando toda a densidade e complexidade da vida real. Não há bandidos e mocinhos

Donny acaba perdendo dois relacionamentos: um com Keeley (que ocorre bem antes de conhecer Martha) e outro com Teri (que ocorre depois de conhecer Martha, conforme citado). O relacionamento com Keeley acaba por motivos que falarei mais adiante. No caso do relacionamento com Teri, acaba em partes por conta dos problemas dele com Martha e em partes por conta de uma questão dele do passado.

Aliás, essa questão do passado de Donny abalou-o e à sua vida de tal forma que o prejudicou em muitos níveis e sentidos e seguiu impactando a vida dele por muito tempo.

O triste e doloroso turning point de Bebê Rena

Donny leva 6 meses para denunciar Martha para a polícia. Ele o acaba fazendo após ela, quando ele estava em um encontro com Teri, agredir verbal e fisicamente Teri e causar uma enorme confusão no bar que ele trabalha (e do qual ela é finalmente banida).

Mas a denúncia não é bem sucedida, pois a polícia alega que ele precisa de mais provas e provas mais contundentes. E, detalhe: ele não relata diversos aspectos que ocorreram. Não conta, por exemplo, da agressão dela à Teri.

A propósito, Donny chega a ir morar com Teri e aquilo faz bem para ele. Mas ele nutre profundas dificuldades em ter relações sexuais com ela. De início ela se mostra compreensiva. Mas com o passar o tempo e do fato dele não procurar algum tipo de ajuda para resolver essa questão e a questão de Martha, o relacionamento deles acaba.

Aqui temos um turning point, que nos ajuda a compreender muitas das atitudes e comportamentos de Donny e sua dificuldade em fazer algo mais incisivo em relação à Marta: Donny foi estuprado por um roteirista/diretor de Tv que tempos antes.

Em um bar, Donny conhece Darrien, um roteirista/diretor, de quem acaba se tornando amigo e o qual também se torna seu mentor. Em um dado momento, Darrien chama Donny para frequentar sua casa, onde ele o ajudará supostamente a escrever uma série e dará muitas dicas. Eles induz Donny a consumir muitas drogas e muitas vezes e, nesses momentos em que Donny está dopado, abusa sexualmente dele. Em um dos momentos mais duros e difíceis de assistir da série, depois de um ápice de consumo de drogas em dado dia, quando Donny está ainda mais dopado que o habitual, Darrien o estupra. A série mostra isso, não economiza na cena, o que a torna demasiadamente difícil de assistir. Donny leva 2 dias para ir embora, muito abalado pelo que aconteceu. Dali em diante some da vida de Darrien.

É essas idas frequentes à casa da Darrien, em detrimento de ficar na companhia da então namorada Keeley e sua posterior dificuldade em ter relações sexuais por conta do trauma sofrido que eles acabam terminando. Donny não conta para ninguém do estupro sofrido, o que é compreensível, pois é uma trauma muito grande, carregado de uma série de questões pesadas para a pessoa, além do medo de ser julgado pelos outros, de sofrer alguma coisa.

O estupro sofrido por Donny, como ocorre com qualquer vítima que sofre tal atrocidade, afeta muitas áreas de sua vida, muitos aspectos de sua psique, de suas emoções, de seus comportamentos. Traz sequelas difíceis e excruciantes para a sua vida e lhe traz muitas dificuldades em muitos sentidos. Afeta seus relacionamentos e faz com que ele tenha dificuldades de denunciar Martha.

A violência traumática que Donny passou é como uma nuvem obscura que pende sobre sua vida. Ele reluta em medidas mais drásticas contra Martha porque entende que ela é uma pessoa sofrida, que deve ter passado por muita coisa e que suas atitudes são fruto de um sofrimento emocional profundo e graves problemas psíquicos.

Donny busca morar em outro lugar, ficar completamente fora de radar, longe da perseguição de Martha mais uma vez. Mas quando ele descobre que ela, por não conseguir contatá-lo, descobre quem são os pais dele e começa a persegui-los. Ele vai então atrás dos pais contar o que houve. Conta sobre Martha, conta sobre a violência sofrida por parte de Darrien. Tenta, em conjunto com os pais, denunciar à polícia, mas sem maiores sucessos.

Numa medida desesperada, encontra Martha, pede para que ela se afaste dos pais dele, sob a falsa promessa de uma noite de amor e instiga ela a mandar um e-mail falando tudo que quer fazer com ele e que o faça descrevendo tudo de maneira violenta. Ele tenta forjar essa prova contundente para ver se sua denúncia logra, mas um plot twist é revelado: Martha gravou tudo. Aliás, ela grava tudo desde o momento em que eles se conheceram. A polícia pede para que Donny deixe que eles façam o trabalho deles.

Martha acaba confessando e sendo presa. Nesse ínterim, ele volta a morar com a ex-sogra, começa a ajeitar sua vida, faz uma peça sobre esse turbilhão de coisas pelas quais passou. Mas apesar desse encerramento “técnico” que tem sua história com Martha, mental e emocionalmente esse fechamento ainda não se deu.

Isso é compreensível, visto que uma parcela bem expressiva das pessoas que passam por situações traumáticas e/ou abusivas e toda sorte de violência tem essa dificuldade. A prisão de Martha e o fato dela não estar mais presente na sua vida não é sinônimo de que aquilo tudo que se passou foi compreendido, de que tudo foi digerido. A conclusão “material” do caso não coincide necessariamente com a conclusão psíquica. Como já foi comentado antes, o processo de cura e encerramento interno de nós seres humanos nem sempre tem uma lógica linear e fechada.

Ele busca entender o que se passou, o que ele viu e o que não conseguiu enxergar na época, busca entender as motivações. É por isso que ele começa a escutar e categorizar os áudios que recebeu de Martha. Ele quer entender esse evento complicado da vida dele.

Nas cenas finais, enquanto escuta mensagens de Martha, ele se vê na mesma situação de Martha: extremamente fragilizado, necessitando de acolhimento, atenção e carinho. Ele adentra em um bar. Uma cena particularmente tocante é quando ele está nesse bar e escuta uma mensagem de Martha que até então ele não tinha ouvido: ela conta que o chama de Bebê Rena por conta de um bichinho de pelúcia que tinha quando era criança. Esse bichinho se tornou, de certa forma, seu objeto de apego, seu porto seguro em meio às brigas constantes e grandiosas dos pais. Sempre que os pais brigavam (e eram brigas constantes), o ursinho ajuda ela a se reconfortar, é sua válvula de escape.

Quando o barman oferece a ele uma bebida por conta da casa (ele esqueceu a carteira em casa) ele se dá conta, ele entende que Martha é uma pessoa que, assim como ele, passou por experiências traumáticas e difíceis em sua vida e seu comportamento errático é oriundo disso.

Muitas pessoas nas redes sociais, curiosamente, não entenderam esse final. Donny não se tornou igual a ela e tampouco iria ou vai fazer igual a ela, se tornar um stalker, nem fazer nada do que ela faz. A cena do bar representa o fato dele compreender melhor Martha, o que ela passou, o que ela deve ter sentido. Ao se ver fragilizado e profundamente carente e necessitando de afeto e quando ele recebe a gentileza do barman, ele compreende um pouco dela e se compadece. É isso o que representa essas cenas finais do bar.

Outro ponto importante que, mais uma vez, evidencia a complexidade de Bebê Rena é, antes dessas cenas finais, quando ele visita seu estuprador. Ele próprio não entende muito bem porque faz isso, mas o que dá para se compreender desse ato é que ele faz isso como uma forma de fechamento, de dar um ponto final nessa história traumática, uma tentativa de enfrentar um dos seus piores medos para poder se curar dele.

Cabe aqui destacar a brilhante atuação de Jessica Stunning no papel de Martha, que pareceu quase real de tão brilhante que foi sua atuação. Ela conseguiu transmitir bem toda a instabilidade de Martha. Richard Gadd também se saiu muito bem interpretando a si mesmo e conseguiu com sucesso nos passar as mensagens que deseja. Vale ressaltar também Nava Mau, que esteve ótima em seu papel como Teri, encantando a Donny e a nós e mostrando a calmaria que ela representava na vida dele.

Bebê Rena não é uma série fácil de ver. Mas, sem sombra de dúvida, vale a pena.

 

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Redatora web há 7 anos. Faço parte da equipe de redação do Cinemarte, escrevendo reviews das séries e filmes que assisto!

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